BRAZIL

DISCURSO DO DR. JOSÉ GREGORI,

MINISTRO DA JUSTIÇA DO BRASIL,

NO DEBATE GERAL DA III CONFERÉNCIA MUNDIAL CONTRA O RACISMO, DISCRIMINAÇÁO RACIAL,

XENOFOBIA E INTOLERANCIA CORRELATA

 


Em primeiro lugar, gostaria de apresentar as condolências do Governo e do povo do Brasil ao Presidente Thabo M'Beki pelo falecimento de seu pai.

Senhora Presidente,

Gostaria de felicitá-la e aos membros da mesa por sua eleição. Estou certo de que, sob sua liderança, nossos trabalhos nestes próximos dias permitirão superar dificuldades, correspondendo às altas expectativas que cercam a realização desta conferência. Gostaria, igualmente, de prestar minhas homenagens à Senhora Mary Robinson~, que, como Secretária-Geral da Conferência, tem emprestado liderança e eficiência aos trabalhos preparatórios. Em nome do Presidente Fernando Henrique Cardoso e de todo o povo brasileiro saúdo e agradeço ao Governo e ao povo sul-africano pela hospitalidade e empenho com que organizaram este encontro.

A criação das Nações Unidas traduziu a reação da comunidade internacional contra os efeitos destrutivos da intolerância. Hoje, em Durban, damos passos adicionais para que essa marca original de nossa Organização, desenvolvida através das normas universais sobre direitos humanos, possa se traduzir, no mundo contemporâneo -que a tecnologia, a comunicação e a informática tornaram mais convergente- em relações de efetiva justiça, igualdade e dignidade para todos, sem qualquer discriminação.

O fato de estarmos na África do Sul, sob a égide ,das Nações Unidas, para, afiançar o princípio universal da igualdade e traçar soluções justas e eqüitativas para os problemas de nossa época, tem grande simbolismo. A África do Sul é a prova de que a justiça é um bem alcançável. Este país, que sofreu durante décadas uma das formas mais hediondas de discriminação racial, o Apartheid, constrói hoje uma ordem política e social baseada na democracia e tem sabido fazê-lo evitando as tentações da violência. Nesse processo de transformação, as Nações Unidas e a comunidade internacional desempenharam um papel importante, mas o mérito maior cabe sem dúvida ao povo desta terra, que soube se reconhecer e se redefinir
com base na tolerância e na vontade de reconciliar-se. Estarmos na África do Sul é, portanto, um incentivo para a construção de um mundo mais igualitário.

A diversidade é uma marca da formação de meu País. O povo brasileiro tem origem em todos os continentes. Somos diversos, somos diferentes e, ainda assim, nos identificamos no projeto comum de construir uma sociedade mais justa. No entanto, o Brasil ainda sofre as conseqüências da desigualdade, cujas raízes se estendem às nossas origens coloniais, ao capítulo nefando da escravidão e às injustiças cometidas durante séculos contra os indígenas. A mesma diversidade que nos caracteriza e enriquece permite a percepção de que, no Brasil, a diferença existe não apenas nas cores, nos credos e nas opiniões, mas em termos de igualdade de direitos e oportunidades. A rigor, nossa democracia ainda está por completar-se; temos a consciência de que seus benefícios não atingem a todos os brasileiros. Essa desigualdade assume a forma de pobreza, de exclusão social e de subdesenvolvimento, mas também, em muitos aspectos, a forma da discriminação.

Felizmente, a consolidação da democracia brasileira tem propiciado a discussão das questões que entravam o andamento desse projeto comum de construção social justa, abrangente e benéfica a todos. Já em seu discurso de posse, o Senhor Presidente da República Fernando Henrique Cardoso inaugurou uma nova etapa no tratamento dispensado pelo Estado brasileiro à problemática da discriminação racial: pela primeira vez na história, a autoridade máxima do país assumiu a existência e relevância do problema racial e reconheceu a interlocução política do Movimento Negro brasileiro. No X Relatório ao Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, em 1995, o Governo brasileiro reconheceu que a discriminação persistia num País que já se pretendeu democracia racial. Acreditamos que, ao admitir a existência de discriminação racial, o Brasil deu o primeiro passo no caminho de sua superação. Há muito o que fazer nesse sentido - e temos feito - , mas o Brasil ainda não é o país socialmente justo que queremos e merecemos ter.

Queremos um país mais justo, sem discriminação ou preconceitos. Queremos um mundo mais justo. Para isso viemos a Durban. O Brasil traz suas experiências e vem disposto a trocá-las com a comunidade internacional. Pensamos ser necessário um esforço conjunto de todos para que eliminemos manifestações agudas de injustiça, desigualdade e discriminação que, infelizmente, têm atingido com freqüência migrantes, refugiados, ciganos e outras pessoas que, por diversas circunstâncias, se deslocam a outros países ou regiões. Os direitos humanos não poderão ser universais se sua proteção, sem qualquer distinção, não beneficiar a todos. O direito a ter direitos e a encontrar proteção adequada da justiça é condição indispensável de uma ordem internacional justa e estável.

Nossa delegação reflete a diversidade étnica e cultural que existe no meu País. Reflete, também, nossa experiência de tolerância. Internamente, o Governo e a sociedade brasileiros se mobilizaram para que pudéssemos trazer à África do Sul uma contribuição legítima e construtiva. No caminho para Durban, estabelecemos um Comitê e realizamos pela primeira vez na história do País uma Conferência Nacional em que Governo e sociedade civil, juntos, traçaram o diagnóstico e propuseram medidas de combate ao racismo e à intolerância que ainda nos assolam. Do referido esforço resultou um relatório síntese dos problemas e propostas de solução que emergiram de extensas discussões e certamente se traduzirão em ações e políticas afirmativas.

Meu País esteve ativamente engajado no processo de preparação deste nosso encontro. Estivemos com os países americanos e caribenhos em Santiago e elaboramos um documento cujo equilíbrio e amplitude nos orgulham. A declaração e o plano de ação de Santiago cobrem, com pertinência, questões prioritárias para o desenvolvimento, nas Américas, de sociedades democráticas, socialmente inclusivas, como a situação dos afrodescendentes, dos povos indígenas, sem deixar de lado as vítimas de fatores múltiplos de discriminação por razão de gênero, orientação sexual ou deficiência física. .

Durante as conferências preparatórias trocamos idéias e tentamos encontrar posições comuns, trabalhando para que o produto desta III Conferência possa ser o mais conseqüente possível. A delegação brasileira quer que, dentro de alguns dias, tenhamos uma Declaração e um Plano de Ação que sim reflitam nossa diversidade, mas que, igualmente, transmitam e traduzam nossa disposição e nosso compromisso de trabalhar juntos para um mundo que acabe por banir o racismo, a discriminação racial e xenofobia e a intolerância.

Senhora Presidente,

Os problemas postos nos temas desta Conferência se manifestam em todos os países aqui representados. Todos, sem exceção. O recrudescimento de manifestações xenofóbicas, a materialização do ódio fundado na nãoaceitação da diferença e os conflitos religiosos são manifestações tangíveis desses problemas. Não cremos que a condenação nominal de um povo ou de um país possa ser construtiva para a superação do obscurantismo que tipifica os assuntos que nossa Conferência irá discutir. Somos todos, ao mesmo tempo, cúmplices e vítimas. O que nos une aqui é o reconhecimento de um problema comum no qual ninguém é mais culpado que ninguém. Esta Conferência não é um tribunal. Contudo, se um dos laços que nos une é o reconhecimento de um problema comum, o outro elo a nos unir será a boa vontade e a determinação para resolvê-lo.

Estamos aqui para que, a partir da diversidade, lutemos por um mundo que pratique a tolerância e não persiga ou faça sofrer ou trate com desigualdade as pessoas em razão de suas diferenças. Para essa luta permanente, a delegação brasileira traz uma lição de tolerância e de reconhecimento das diferenças que nos unem. Nelson Mandela nos lembra que "ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem. As pessoas aprendem a odiar e, se elas podem aprender a odiar, elas também podem aprender a amar, porque o amor é muito mais natural no coração humano que o ódio." O malogro de nossas discussões em Durban seria uma derrota maior do que podemos imaginar Além das diferenças que nos singularizam, existem a humanidade e a dignidade intrínseca que nos identifica a todos. Não se combate intolerância com mais intolerância. O exemplo, portanto, deve ser dado por nós. É essa a beleza de nossa tarefa.

Muito obrigado